Artigo do leitor: “Só nos resta orar”

por Carlos Britto // 27 de novembro de 2016 às 21:36

clovis-guimaraesO ex-pesquisador da Embrapa Semiárido, Clovis Guimarães Filho, faz uma análise pertinente sobre a questão hídrica na região e a falta de prioridades para o homem da caatinga.

Boa leitura:

Já são seis anos consecutivos de estiagem severa em todo o semiárido e, até agora, praticamente sem qualquer resposta efetiva em termos de apoio ao produtor por parte dos órgãos competentes, tanto federais como estaduais ou municipais. Seminários, simpósios, reuniões, grupos de trabalho, comitês, “missões internacionais” e outros sobre estes anos de seca não foram suficientes sequer para fundamentar uma agenda mínima de trabalho. Respostas mais efetivas ao produtor continuam apenas na esfera das emergenciais, como se a estiagem fosse uma surpresa. Ações mais concretas devem ser creditadas apenas ao esforço individual de algumas poucas entidades, infelizmente em um nível ainda muito pontual, quase negligenciável em termos de público beneficiado.

Nos primeiros dois anos de estiagem ainda esboçaram algumas formas de apoio ao produtor, como crédito especial para estiagem, distribuição de ração, perfuração de poços, etc. Mas, salvo a renegociação das dívidas, todas sucumbiram pela absoluta incompetência gerencial em fazê-las atingir um número significativo de beneficiários. Hoje, devido à crise. as ações não passam de “remendos”. Nem os pipeiros estão sendo pagos regularmente. Em todos esses anos o desperdício de água continuou generalizado, sem que nenhuma providência ou iniciativa para combatê-lo tivesse sido tomada. Lavagens de calçadas e de carros, às vezes até com água tratada, além de vazamentos e desvios, camuflados ou escancarados da rede pública são cenas do cotidiano das nossas cidades.

O Lago de Sobradinho está com água correspondente a menos de 6% de sua capacidade e, segundo previsões, deve atingir os 2 % até o final do ano. O mesmo acontece com os demais reservatórios em todos os estados. O Velho Chico agoniza induzido pela inépcia dos órgãos ambientais, praticamente confinados ao litoral, ante a devastação irresponsável de seus principais afluentes.  Exemplos disso são os riachos Pontal e Salitre, importantes afluentes em Pernambuco e na Bahia, bem aí às nossas vistas, em seus últimos estertores com o aniquilamento de suas matas ciliares.

Na verdade as coisas só melhorarão quando começarmos a enxergar as estiagens como fatores normais de produção, e não como anormalidades. Tudo isso em uma região de potencial imenso em recursos naturais e humanos para dar um padrão de vida condigno às suas populações. O caatingueiro foi muito pouco lembrado nas recentes campanhas eleitorais. Alguns candidatos até tocaram no assunto, mas de uma maneira muito genérica e superficial. Nos debates da TV o tema “campo” não foi nem levado em conta para sorteio e debate entre candidatos. Não foi apresentada qualquer proposta clara e racional de apoio ao caprino-ovinocultor, nem mesmo um plano estratégico anual de formação de reservas de forragens par os rebanhos, providência elementar e capital de qualquer secretaria estadual ou municipal de agricultura em parceria com agências de crédito.    

Infelizmente a irrigação ainda é uma solução apenas parcial para o nosso semiárido. Apenas pouco mais de 2% de sua área apresenta condições satisfatórias (água e solos de qualidade no mesmo espaço) para sua adequada utilização. Somente agora, forçados pela crise, é que se começa a falar em reuso de água, prática já utilizada desde o século IV a.C  pelos romanos. O mesmo, com relação à exploração de alternativas não agrícolas no nosso semiárido. O potencial é imenso. As iniciativas são frustrantes. Veja-se o caso do abandono do projeto da Serra da Capivara, no Piauí. Em Campo Formoso, município sofrido do sertão baiano, hibernam as duas maiores grutas do Brasil. Mais de 20 km de galerias subterrâneas, com lagos e estalactites de 20m de comprimento, tudo já mapeado e estudado pela USP. Maquiné não chega “nem aos pés”. Até hoje as grutas não contam sequer com uma via de acesso digna desse nome.  

Ao final das contas o que salta mesmo aos olhos é a nossa lerdeza em olhar um pouco mais para baixo e reconhecer o potencial de águas subterrâneas das bacias sedimentares da região. O recém-falecido engenheiro Manoel Bonfim Ribeiro, antigo diretor do DNOCS, reclamava que mais de 40% dos nossos poços tubulares estavam fora de operação por razões diversas, menos por falta de d’água. Ele afirmava que “o semiárido é uma ilha cercada de água doce por todos os lados”. São estimadamente 135 bilhões de m3 em reservas subterrâneas. Só a água subterrânea da bacia do Gurguéia é suficiente para abastecer 2/3 da população brasileira. Um bom projeto de adutoras faria o resto. Manoel Bonfim concluía que, o que falta mesmo não é água, e sim gestão. Isso nos faz perguntar. Não se perfuram poços petrolíferos no pré-sal, a 5-7 mil metros de profundidade para alimentar veículos? Por que não se perfuram poços, a um custo infinitamente mais baixo, na área sedimentar do semiárido, a 300-1.000 metros de profundidade, para alimentar pessoas? Não seria também uma prioridade?

Resultado da imprevidência generalizada: prejuízos calculados pela Confederação Nacional dos Municípios em mais de 100 bilhões de reais, atingindo 33 milhões de pessoas. Agora não adianta mais vir com remendos. Só nos resta orar para que chova abundantemente.

Clovis Guimarães Filho/M.Sc. em Animal Science e ex-pesquisador da Embrapa Semiárido

Artigo do leitor: “Só nos resta orar”

  1. Cândido Roberto disse:

    Triste realidade do nosso semiárido. excelente artigo!

  2. Alineaurea disse:

    Menção pertinente e séria de Dr. Clóvis Guimarães a um desafio já conhecido por diversos segmentos da sociedade. Precisamos sim estar conscientes cada dia mais de nosso papel, como cidadão, técnico ou gestor das ações possíveis e cabíveis num cenário como esse de estiagem que já não é mais novidade e já se tem caminhos os mais diversos de como conviver com ele. Parabéns pelo artigo, Dr. Clóvis.

  3. Bet disse:

    Excelente texto, argumentação coerente… pensa-se somente no agronegócio, na irrigação, no uso de agrotóxicos para lindos frutos e exportação… Isso me lembra o saudoso bispo de Juazeiro, Dom José Rodrigues, onde está o homem da caatinga nisso tudo? Onde está a natureza sendo usada com sabedoria? Que este texto de alerta sirva para algumas urgentes tomadas de decisão… Será?
    Parabéns Clóvis Guimarães, vamos divulgar este texto seu e cobrar atitudes dos nossos governantes e “empreendedores”.

  4. Helenilda disse:

    Excelente artigo, Dr Clovis!?????

  5. José nilton disse:

    Muito pertinente e oportuno. Parabéns!

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