Artigo do leitor: “10 anos da tragédia da Boate Kiss e a importância da Polícia Científica”

por Carlos Britto // 02 de fevereiro de 2023 às 14:33

Neste artigo, o perito criminal aposentado da Polícia Científica de Pernambuco, Cleomácio Miguel da Silva, faz uma análise concisa da tragédia da Boa Kiss, que deixou centenas de mortos há dez anos.

Confiram:

No dia 27-01-2023 fez, exatamente, 10 anos da tragédia da Boate Kiss. Segundo denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), na madrugada desse dia, em 2013, estava acontecendo uma festa de universitários na Boate Kiss, em Santa Maria-RS, quando de repente, o vocalista da banda denominada de “Gurizada Fandangueira” acionou um artefato de pirotecnia que, em frações de segundos, espalhou centelhas em direção ao teto, que possuía revestimento acústico de poliuretano (vulgarmente conhecido como “espuma casca de ovo”), resultando em chamas que rapidamente espalharam-se pelo local, causando um incêndio que levou a óbito  242 pessoas. Segundo os laudos tanatoscópicos, a causa da morte dos estudantes foi decorrente da asfixia provocada pela inalação dos gases tóxicos cianeto e monóxido de carbono. Estes gases, quando inalados pelo ser humano, e dependendo do nível de toxicidade química, causam hipóxia que compromete severamente órgãos vitais. 

Durante a minha estada na Polícia Científica, participei de inúmeros procedimentos técnicos periciais em local de incêndio. Dependendo do tipo de incêndio, no geral, entender sua dinâmica não é uma tarefa fácil, pois envolve etapas de elevado grau de complexidade. Isso requer muita experiência do Perito Criminal. Digo sempre: “as chamas falam e deixam suas impressões digitais”. A dinâmica de um incêndio deve ser muito bem interpretada, caso contrário o Laudo Técnico Pericial será sofrível e inconclusivo.

Durante o entendimento do “modus operandi” de um incêndio, é fundamental que o Perito Criminal tenha em mente o comportamento do gráfico: Calor X tempo. Isso envolve as seguintes fases: pré-ignição, ignição, crescimento da chama, inflamação generalizada, incêndio propriamente dito e extinção do incêndio. Sem isso em mente, dificilmente o perito criminal irá elaborar um Laudo Pericial com robustez técnica.

Sendo assim, e dentro desse contexto, fiz um breve comentário sobre o incêndio da Boate Kiss. Para tanto, examinei fotografias, vídeos, informações da mídia e realizei pesquisa na literatura especializada. Quando um perito criminal chega a um local de ocorrência de incêndio, ele deve procurar por padrões de queima relacionados com as coisas que foram atingidas pelo fogo. Experimentos termodinâmicos mostraram que não é o próprio combustível que arde (gera o fogo), mas o vapor que o combustível produz. Por exemplo, à medida que se aquece a madeira, ela começa a emitir vapores que se inflamam, tendo a madeira como combustível.

No caso da Boate Kiss, não houve combustão intensa causada pela aceleração das chamas (“Flashover”). Certamente, isso foi decorrente da baixa concentração de oxigênio no local (fechado), combinado pela dificuldade da movimentação das chamas na posição horizontal (teto). O “Flashover” acontece quando as superfícies expostas ao calor atingem a sua temperatura de ignição, quase que simultaneamente, fazendo com que as chamas se espalhem rapidamente por todo o espaço, resultando em envolvimento total do compartimento ou envolvimento total do espaço fechado.

Quando os vapores oriundos do aquecimento de uma superfície (parede, teto e piso) se inflamam, as chamas espalham-se rapidamente sobre ela. Este fenômeno é chamado de “Flameover”. É muito comum em local de incêndio com baixo nível de oxigênio, encontrar variações do que eu chamo de “padrões de fuligem”. Nas fotografias do epicentro do incêndio da Boate Kiss divulgadas pela mídia, é possível observar elevada quantidade de fuligem no teto, que vai diminuindo em direção ao piso. Isso indica variações de temperatura. Neste caso, a variação de temperatura entre o teto e o piso aconteceu devido ao fenômeno “Flameover”. Esse fenômeno ocorreu porque os vapores inflamaram-se na zona de transição localizada entre o teto e o piso. Tal situação gerou diferentes “padrões de fuligem”.

Daí o degrade nos “padrões de fuligem” na tríade direcional: teto, zona de transição e piso. Uma boa técnica para o imaginário pericial é considerar a Boate Kiss como uma grande “caixa fechada”, onde um processo termodinâmico libera calor através de reações exotérmicas, gerando quantidades elevadas de vapores de cianeto e monóxido de carbono (nuvem altamente tóxica) provenientes da queima do poliuretano. Tal situação me fez lembrar das câmaras de gás usadas pelos nazistas para exterminar prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial.

No caso da Boate Kiss, a Polícia Científica do Rio Grande do Sul realizou um exímio trabalho no local, fornecendo as provas técnicas para as tomadas de decisão da Justiça. Nesses 10 anos da tragédia desse famigerado evento, a Polícia Científica gaúcha deveria ser lembrada, não apenas como entidade técnico-científica, mas como “Guardiã” da sociedade.

Cleomácio Miguel da Silva/Perito Criminal Especial aposentado da Polícia Científica de Pernambuco

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Últimos Comentários