Artigo do leitor: Cidadania e ‘roupa velha’

por Carlos Britto // 22 de abril de 2015 às 10:04

Babá descontraídoEm mais um artigo enviado ao Blog, o comunicador Omar Torres ‘Babá’ suscita o debate sobre uma relação da época do coronelismo, mas que persiste em se fazer presente nos dias atuais.

Confiram:

É frequente pessoas afirmarem, com certo orgulho até, de que “aqui prevalecem as relações pessoais e que com amizade tudo se resolve”.  Entendo que a citação do nobre sentimento da amizade serve como biombo para ocultar a mensagem subliminar, implícita na frase, da negação de cidadania.

Depois de refletir, coloco o meu entendimento sobre a questão e convido a quem queira contribuir com a discussão, que tem como pano de fundo os constantes e permanentes desrespeitos aos direitos do cidadão. Deixo claro que sei das minhas limitações e, por isso, passa longe de mim a pretensão de estar produzindo uma verdade absoluta e inconteste. Estou aberto a outras interpretações e críticas. Só peço que sejam exercidas com urbanidade, em alto nível e com contribuição para a ampliação do entendimento.

Sempre que a frase “aqui prevalecem as relações pessoais e com amizade tudo se resolve” entra pelos meus ouvidos, a minha consciência pergunta indignada: e como fica a maioria da população que não tem amigos influentes ou acesso a quem possa dadivosamente conceder seus direitos? Sem amigos influentes não há direitos?

Ela reafirma a negação dos direitos constitucionais do cidadão e, sutilmente, ou nem tanto, defende a supremacia do poder individual, personalizado no amigo importante ou na autoridade generosa que atende pedidos e concede direitos, mesmo quando não existem.

Uma busca no tempo revela que houve épocas em que um pequeno e seleto grupo detinha todo tipo de poder e tudo controlava. Quem chegasse à cidade para se instalar, com qualquer atividade, devia pedir a benção e a proteção de doutor fulano; se precisava de um emprego, que pedisse a doutor sicrano; o filho inteligente demonstrava aptidão para os estudos, devia implorar ao doutor a oportunidade dos estudos; se havia a necessidade de um tratamento médico, que rogasse a doutor beltrano; para punir a quem ofendeu a honra da família, deveria sensibilizar ao doutor e esperar que o delegado prenderia e o juiz condenaria; se o criminoso fosse amigo ou filho de um amigo, o mesmo doutor determinava ao delegado para não prender e ao juiz para não condenar.

Assim, o tempo se encarregou de introjetar e fortalecer na população local e adjacente o convencimento de que o direito de cada um era, na verdade, dádiva de quem tudo podia. Só precisava ter a sorte de ser amigo ou possuir o amigo que interferisse para criar a oportunidade de chegar a quem, sensibilizado, ouviria a consciência determinar que utilizasse o livre arbítrio para decidir pelo merecimento do privilégio suplicado.

O acesso seletivo ao grupo que detinha o poder criou um subgrupo que se acredita privilegiado e que sobrevive aos tempos. As milhares de pessoas que chegaram depois se relacionam com um e outro grupo e são convencidas da necessidade de absorverem e se moldarem à cultura existente. São eles os que têm acesso às autoridades que decidem e se constituem em elemento fortalecedor do modelo elitista vigente na região, fazendo com que a minoria controle e mais usufrua do poder e das riquezas aqui produzidas.

Eles alimentam a contradição de uma sociedade que se orgulha de ser progressista, moderna, contemporânea do mundo atual e, ao mesmo tempo, se aferra ao passado e cultua antigas práticas de compadrio, protecionismo e negação de cidadania.

A imagem que me ocorre quando ouço a afirmação de que “aqui prevalecem as relações pessoais e que com amizade tudo se resolve” é a de uma roupa velha que já esteve na última moda, na crista da onda como se dizia, e tornava elegante, orgulhoso, invejado e cobiçado quem a usava. Hoje, mesmo fora de moda, ainda está guardada, alimentando em quem a usava a esperança de reduzir a silhueta, agora avantajada pelo tempo, e reformá-la para que volte a caber dentro dela.

Omar Torres/Radialista

Artigo do leitor: Cidadania e ‘roupa velha’

  1. Luis Fernando disse:

    Perfeito o comentário. Sou de fora e depois de 7 anos residindo aqui tenho que concordar. O trem do desenvolvimento passa por aqui seguidamente e a cidade não aproveita devido a essa política de troca de favores. A população não cresce, pois se sente de mãos atadas a espera desses favores. A arrogância dos ditos privilegiados aqui é tão gritante que chega a dar nojo. Gente vagabunda que acha que só tem direitos e só vive em uma condição melhor por dever favores a alguém. Se a população acordasse para a realidade, percebesse o quanto os tais “favorzinhos” custam caro e clamasse por direitos ao invés de favores, viveríamos em um lugar bem melhor.

  2. Rosa Alves disse:

    A capacidade das pessoas de “atirar pedras” me surpreende todos os dias. De repente, não mais que de repente, o que era doce, amarga; o que antes era luz, agora escurece; o que nos “vestia” como uma luva, hoje já não nos serve. O despeito, a intolerância, a insatisfação, parece permear e influenciar opiniões, atitudes… Acreditar que o tráfico de influência não faz parte do nosso dia a dia, seria imaturo, uma ingenuidade! Ele está presente em todos os escalões do governo, está presente em nosso dia, em pequena ou em larga escala. Ele está presente quando solicitamos um abono de falta ao nosso chefe, quando pedimos ao professor de nosso filho para que ele faça a prova em nova data porque estaremos viajando no feriado, quando pedimos a algum conhecido na fila do banco para pagar nosso boleto, enfim, usamos nossa influência e/ou amizade acreditando não estar prejudicando ninguém.
    Então não vamos nos fazer de virtuosos, não vamos apontar ninguém com nossos dedos sujos. Até podemos não concordar, mas não vamos atirar pedras na agua que até pouco tempo bebíamos. E até que me provem o contrário, esse tráfico de influência não nos atrapalhou em nada! Despeito de quem acha que o trem do desenvolvimento passou por aqui e não aproveitamos. Olha em volta, olha pra nossa vizinha Juazeiro, compara avenidas, viaduto, orla, catedral, campus universitário, hotéis, aeroporto, etc, etc. Analisa e ver onde as oportunidades deixaram de ser aproveitadas! Mas é compreensível, vindo de um forasteiro, de um visitante! Mas foi exatamente essa cidade sem oportunidades que o acolheu, que oportunizou trabalho nesses sete anos. A cidade não cresce??? Informe-se, busque dados, pesquise. E verá que essa cidade cresceu acima da média de qualquer cidade do interior. E que povo hospitaleiro! Que bem acolhe todos sem distinção, inclusive aqueles visitantes que desconhecem sua história!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Últimos Comentários

  1. Era tão articulado que foi eleito sem voto pelos militares. Não ganhou por mérito próprio, foi imposto.