Artigo do leitor: “Quando o jogo mata – as bets, o futebol e a doença que o Brasil insiste em ignorar”

por Carlos Britto // 17 de dezembro de 2025 às 20:30

Foto: Joédson Alves/AgBr

Em seu novo artigo para o Blog, o advogado e colaborador Rivelino Liberalino chama atenção para um problema que que desafia as autoridades: os jogos de azar dos tempos modernos. Confiram:

Há poucos dias, uma filmagem circulou nas redes sociais e deveria ter provocado mais do que indignação passageira. Deveria ter gerado espanto cívico. Antes mesmo de a bola rolar, uma casa de apostas sinalizou que determinado pênalti seria perdido. O jogador cobrou. Errou. O mercado acertou. Não foi sorte. Foi sintoma.

Esse episódio não pode ser tratado como curiosidade digital ou teoria conspiratória de botequim. Ele expõe, com clareza incômoda, que as apostas esportivas deixaram de ser entretenimento ocasional para se tornarem vetor de contaminação social, esportiva e moral. Entraram pela porta larga do futebol, nossa paixão coletiva mais visceral, e hoje corroem famílias, adoecem pessoas e lançam suspeita sobre aquilo que deveria ser símbolo de alegria compartilhada.

Quem acha o diagnóstico exagerado precisa olhar para fora. O futebol turco oferece o exemplo mais recente e perturbador. Uma investigação conduzida pela federação local e pela polícia revelou um sistema estruturado de manipulação de resultados. Dirigentes presos. Árbitros envolvidos. Mais de mil jogadores suspensos. Campeonatos paralisados. Resultados sob suspeita permanente. Não foi desvio pontual. Foi modelo de corrupção alimentado por apostas, funcionando dentro das próprias estruturas oficiais do esporte.

A pergunta que se impõe é inevitável: o Brasil acredita mesmo que está imune?

Aqui, as plataformas de apostas cresceram de forma vertiginosa. Dados de tráfego digital mostram que sites de bets figuram hoje entre os mais acessados do país, atrás apenas de gigantes como Google e YouTube. Não se trata de lazer eventual. É acesso contínuo, diário, compulsivo. É dependência em escala industrial.

E essa dependência já cobra um preço altíssimo. Segundo dados oficiais da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, os atendimentos relacionados ao transtorno do jogo praticamente triplicaram nos últimos anos. Entre janeiro e setembro de 2025, foram registrados 114 atendimentos, contra apenas 35 em 2023 — um aumento superior a 90%. No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, referência nacional, o número de pessoas inscritas para tratamento saltou de 66 em 2023 para 191 em 2024. Hoje há fila de espera com centenas de pessoas aguardando atendimento.

Esses números não são estatísticas frias. São vidas em colapso. Pais de família endividados. Jovens que perderam o controle. Trabalhadores afastados. Casamentos destruídos. Crianças expostas ao caos financeiro e emocional dentro de casa. E aqui é preciso dizer com todas as letras, sem rodeios e sem moralismo barato: ludopatia é doença. Não é falta de caráter. Não é fraqueza moral. Não é “falta de vergonha na cara”. É doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, classificada no CID-11 como Distúrbio do Jogo — uma condição que provoca prejuízos graves à vida pessoal, familiar e profissional. Isso é ciência. Isso é medicina. Negar isso é ignorância ou conveniência.

O que torna tudo ainda mais cruel é a normalização do adoecimento. O cassino moderno não tem porteiro, não fecha as portas, não exige documento. Ele mora no bolso, no celular, no meio do futebol transmitido em horário nobre. Funciona vinte e quatro horas por dia. Fala diretamente com o desespero de quem já vive pressionado pela desigualdade, pela ausência de educação financeira e pela ilusão do enriquecimento fácil.

Segundo dados do Banco Central, bilhões de reais circulam mensalmente em apostas online. Parte desse dinheiro vem, inclusive, de famílias beneficiárias de programas sociais. Dinheiro que deveria ir para comida, gás, remédio, aluguel. Vai para algoritmos que não conhecem culpa, nem limite, nem compaixão.

E há um custo que raramente aparece nos balanços: os suicídios. Eles existem. Eles acontecem. Eles são relatados por profissionais de saúde e por familiares devastados. Jovens que perderam tudo. Pais que não suportaram a vergonha. Trabalhadores esmagados pela dívida e pelo silêncio. Quantos ainda serão necessários para que o Brasil acorde?

Enquanto isso, o sistema público de saúde admite que não dá conta. O SUS já opera no limite, sem profissionais suficientes para atender a explosão de casos ligados ao vício em jogos. Pesquisadores do próprio Hospital das Clínicas alertam que estamos sentados sobre uma bomba-relógio social.

Mas há esperança. Há acolhimento. Há caminhos de recuperação. Em Petrolina, o grupo Jogadores Anônimos funciona na Rua São José, nº 121, Centro, com reuniões todas as sextas-feiras, às 19h30. Ali não se aponta o dedo. Ali se estende a mão. Ali se reconstrói o que as bets ajudaram a destruir.

A sociedade brasileira precisa decidir se continuará tratando isso como modinha digital ou se terá coragem de encarar o problema pelo nome correto: uma doença que adoece indivíduos, destrói famílias e ameaça o tecido social. Até quando vamos fingir que não vemos? Até quando vamos tolerar que o lucro se sobreponha à vida? Será preciso perder ainda mais pessoas para que essa discussão deixe de ser incômoda e passe a ser urgente?

O jogo não pode vencer a vida. O futebol não pode ser sequestrado pelo mercado. E o Brasil não pode continuar normalizando uma tragédia que já tem números, estudos, diagnósticos e vítimas reais.

Rivelino Liberalino/Advogado

Artigo do leitor: “Quando o jogo mata – as bets, o futebol e a doença que o Brasil insiste em ignorar”

  1. Roberto disse:

    Um artigo bem elaborado. Todavia, fechamos os olhos para quem entrega as armas sem nenhum tipo de controle, e incentivam a população a participar de uma “roleta russa”, escondendo da massa as vítimas de uma ganância desenfreada!

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