Uma área do projeto de irrigação mais tradicional do governo federal, em Petrolina, foi liberada para ser transformada em um condomínio por uma empresa, contrariando uma série de pareceres técnicos de servidores.
O empreendimento, de 116 hectares —cerca de 170 campos de futebol— foi aprovado pelo diretor-presidente da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), Lucas Felipe de Oliveira, em uma resolução interna de 4 de dezembro.
A área fica no Perímetro de Irrigação Senador Nilo Coelho, e, por lei, só pode ser usada para agricultura com base em irrigação. Foi com base nisso que a União leiloou os terrenos para iniciativa privada, com preços adequados para esse fim.
Agora, a Codevasf autorizou o uso do lote para “ação social objetivando a implantação de moradias populares para a população de baixa renda, nos moldes do Programa ‘Minha Casa Minha Vida’ ou programa habitacional de cunho social com finalidade similar”, mas sem dar critérios objetivos do que seria considerado “moradia popular”.
Desde 2013, a empresa Green Valle Exportação de Frutas vinha tentando conseguir aprovação para usar a área para fins residenciais, já que, com o crescimento da cidade, aumentou a demanda por moradia naquela região.
Uma das sócias da Green Valle é a Plus Empreendimentos S.A., que está por trás de um dos empreendimentos imobiliários mais exclusivos de Petrolina, o Gran Ville. As empresas foram procuradas, mas não responderam até a publicação desta reportagem.
Justificativa
A Codevasf defendeu o projeto para reduzir o “déficit habitacional” da cidade.
O que pareceres técnicos anteriores argumentaram para rejeitar o pedido:
– falta de amparo legal para a mudança de destinação da área;
– uso pretendido incompatível com a Política Nacional de Irrigação;
– área integrante de projeto público, com uso legalmente restrito;
– prejuízo ao funcionamento do sistema de irrigação;
– comprometimento das áreas de drenagem do projeto;
– risco de desequilíbrio ambiental e perda de funções ecológicas;
– ausência de fundamento técnico ou jurídico para alterar a destinação da área.
Em maio, dois técnicos, Arlete Carvalho Rocha e Teotonio Marques da Silva Filho, assinaram uma nota dizendo que não havia fundamento legal para mudar a destinação da área, que deveria permanecer dentro do projeto.
Depois disso, em julho, uma resolução da presidência da Codevasf autorizou o início dos estudos para a mudança de destinação da área. Arlete e Teotônio foram exonerados de seus cargos.
Criado em 1970, o Distrito de Irrigação Senador Nilo Coelho (DINC) é considerado um modelo para o desenvolvimento na região. Gera 120 mil empregos, com capital privado — os produtores são donos dos lotes e repartem os custos da irrigação. Em 2024, o valor bruto de produção do distrito foi de R$ 4,5 bilhões.
Consequências
Outro problema apontado em relação às áreas que a Green Valle quer usar de forma residencial é a inadimplência em relação à taxa de água, já que quem não paga sua parte torna mais caro o valor pago pelos demais agricultores. Como os lotes estavam inadimplentes, já deveriam ter sido retomados pela União por descumprimento de contrato, sustentaram os técnicos da Codevasf.
Além disso, a construção acabará inviabilizando o uso dos lotes ao redor para o projeto de irrigação. “A alteração do objeto de utilização dos lotes em referência inviabilizará todo setor onde está situada Estação de Bombeamento (EB) 17, pois a mesma ficará no meio do centro urbano“, diz a nota técnica. “Os demais lotes transformar-se-ão em ilhas produtivas cercadas de loteamentos, havendo necessidade de adotar medidas compensatórias por parte da Codevasf“, prossegue a nota.
“A infraestrutura de uso comum do setor da EBI7 é composta por canal de condução, reservatório, estradas, prédio, adutoras de distribuição equipamentos (conjunto motobombas, válvulas, transformadores painéis elétricos). Toda esta infraestrutura ficaria inviabilizada, pois ela estaria dentro do núcleo urbano e perderia sua função“, completa.
Outro lado
No pedido, a empresa argumentou que o risco de invasões, o crescimento urbano e o potencial da área para novos empreendimentos justificariam a mudança.
“A conurbação é um processo, por vezes irreversível, de fusão de áreas urbanas, seja entre municípios distintos ou pela expansão da cidade sobre áreas rurais adjacentes, e tem impactos significativos no planejamento urbano e na gestão do território“, diz a empresa.
A Codevasf justifica a autorização no entendimento de que se trataria de um “projeto urbanístico de interesse social, voltado a otimizar o uso de terras sem vocação agrícola na resposta a demandas sociais e de ordenamento urbano” — embora técnicos tenham atestado que há cultura de manga nos lotes em questão, ou seja, estão sendo utilizados para a agricultura.
“A Codevasf aprovou a destinação de área não irrigável do Projeto de Irrigação Senador Nilo Coelho para a implantação de moradias populares, nos moldes do programa Minha Casa Minha Vida ou de programa habitacional similar, de cunho social. A medida tem por objetivo contribuir para a redução do déficit habitacional do município de Petrolina“, disse a estatal ao UOL.
“A autorização concedida pela Codevasf está condicionada à observância do rito de regularização fundiária, à adequação do empreendimento habitacional ao plano diretor do município, ao cumprimento da legislação ambiental, à instalação de estruturas de segurança e drenagem e ao reconhecimento, por parte da empresa interessada, de responsabilidade por quaisquer danos decorrentes da implantação do empreendimento“.
As manifestações de natureza técnica e jurídica existentes no processo, diz a Codevasf, “apresentaram ponderações sobre a proposta e parâmetros para o prosseguimento da iniciativa“. “Essas manifestações subsidiaram a decisão da diretoria da Codevasf“. A reportagem foi produzida pela jornalista Natália Portinari, do Portal UOL.


