Neste artigo, o advogado Rivelino Liberato reflete sobre a morte de Gerson, o “Vaqueirinho”, jovem que entrou na jaula de uma leoa no último domingo (30/11) em um zoológico de João Pessoa (PB), e critica a reação de parte da sociedade, que celebrou a tragédia. No texto ele ainda questiona a perda da empatia no Brasil e aponta falhas estruturais que marcaram a vida do jovem desde a infância.
Confiram:
Há tragédias que não revelam apenas a morte de alguém. Revelam, com brutalidade, a morte silenciosa de uma sociedade inteira. No domingo, dia 30, o jovem Gerson, conhecido como “Vaqueirinho”, escalou um muro de seis metros e entrou na jaula de uma leoa. Ali encontrou seu fim. Mas o fim que mais me assustou não foi o dele. Foi o nosso.
A leoa agiu pelo instinto que carrega desde que nasceu. O ser humano agiu pelo instinto que escolheu cultivar. E esse é o mais perigoso. O ataque do animal foi natural. O ataque das pessoas, não. Diante da notícia, uma multidão correu para comemorar a morte de um menino. Não era um bandido de filme. Não era um monstro mitológico. Era um jovem de dezenove anos, que carregava uma vida inteira de abandono, dor e diagnósticos graves que ninguém tratou. Ele tinha nome. Tinha história. Tinha alma. E o país inteiro reduziu isso a uma frase cruel. Bem feito.
Esse é o Brasil que assusta. Não o Brasil da violência explícita. O Brasil da violência emocional, espiritual, silenciosa. O Brasil das almas secas. O Brasil que perdeu o tremor da empatia, que perdeu o sagrado da vida humana, que perdeu a capacidade de sentir antes de julgar. Gerson nasceu dentro de uma tempestade que ele não criou. Mãe doente. Avó doente. Diagnósticos pesados. Abandono em sequência. Irmãos adotados. Ele não. Uma infância inteira ouvindo que era difícil. Ineficiente. Caso perdido. Uma vida inteira tentando provar que merecia existir. E quando um ser humano é ferido desse jeito desde cedo, ele cresce com uma cicatriz que o mundo não enxerga. Cresce buscando sentido onde não há chão. Cresce procurando coragem onde só existe dor. Cresce tentando domar leões simbólicos que rugem dentro da mente.
O sonho dele era domar leões. Não era sobre feras. Era sobre traumas. Era sobre enfrentar o monstro invisível que nunca o deixou dormir em paz. Quando escalou aquele muro, ele não buscava aventura. Ele buscava existência. Ele buscava um lugar onde pudesse sentir que ainda era alguém. O Estado falhou antes de todos. Não havia acompanhamento profissional. Não havia rede de proteção. Não havia cuidado. Não havia nada. A tragédia não começou no zoológico. Começou quando a sociedade decidiu que alguns meninos são descartáveis.
E mesmo assim, diante dessa história inteira, o que vimos foi escárnio. O que vimos foi celebração. O que vimos foi gente zombando da dor alheia como quem joga lixo fora. O que vimos foi a frieza que brota de um coração que esqueceu Deus. Porque quando alguém olha para a miséria de outro ser humano e ri, ali já não existe compaixão. Ali não existe fé. Ali não existe alma. Ali só existe deserto.
Esse episódio expôs a jaula verdadeira. E ela não estava no zoológico. Ela estava dentro de nós. Uma jaula construída com ressentimentos, frustrações, vazios afetivos, dores antigas que nunca foram tratadas. Pessoas que carregam feridas profundas, mas ao invés de curá-las, escolhem projetar sua dor no mais frágil. O ataque à memória de Gerson não foi racional. Foi emocional. Foi a fala de um país adoecido que já não reconhece a própria humanidade.
Quem quiser entender o ser humano de verdade precisa entrar numa sala de recuperação, de doze passos, de qualquer irmandade anônima. Ali ninguém finge força. Ali ninguém se esconde. Ali as máscaras caem. Ali a verdade aparece como deveria aparecer no mundo inteiro. Dor é dor. Alma é alma. Gente é gente.
Mas aqui fora, no palco das aparências, preferimos zombar. Preferimos atacar. Preferimos machucar. Preferimos ignorar que todos carregamos feridas abertas. Preferimos esquecer que um dia fomos crianças precisando de cuidado. Preferimos esquecer que amanhã pode ser um dos nossos precisando de compaixão.
O Brasil precisa pedir perdão a si mesmo. Precisa olhar para o céu e dizer com sinceridade. Perdemos a medida da humanidade. Perdemos o espanto. Perdemos o respeito pela dor do outro. Perdemos o cuidado com a alma. Perdemos a beleza de ser gente que acolhe. Este texto não é sobre a leoa. Ela se defendeu. Este texto é sobre nós. Sobre o que nos tornamos. Sobre o que ainda podemos evitar. Sobre o risco que corremos quando permitimos que a crueldade vire hábito e a empatia vire vergonha.
Porque quando uma sociedade celebra a queda de um menino que nunca teve chance, ela não está julgando o menino. Está assinando a própria sentença. Está confessando que a jaula que devora não é feita de grades. É feita de gente que esqueceu de sentir.
Que Deus tenha misericórdia de nós. Que Ele cure a nossa cegueira emocional. Que Ele nos devolva o dom mais precioso que existe. A capacidade de enxergar o outro como alguém que também sangra, também sofre, também precisa ser amado. Porque quando a empatia morre, morre junto a alma do país.
Rivelino/Victoria Liberalino



Excelente reflexão