Artigo do Leitor: A Casa de Dr.Moraes

por Carlos Britto // 18 de maio de 2015 às 09:00

PetrolinaNeste artigo, o leitor Fernando Dourado Filho rememora um pouco da história de Petrolina e da família Coelho. Confiram:

Ao longo da agonia de Tancredo Neves, eu morava nas Perdizes e, diariamente, na volta da fábrica, parava à porta do Incor para saber da saúde do presidente eleito. Em expectativa muda, me deparava com o porta-voz Antonio Brito. De olhar esgazeado, o gaúcho dava uma versão manietada dos fatos. Visitantes ilustres paravam na rampa para entrevistas. No estacionamento, ambulantes e pregadores vendiam picolé e esperança. Os boletins só se renderam à verdade no dia 21 de abril. Que sina.

Aquele endereço evocava sentimentos que me eram dolorosos. Ali tinha morrido Elis Regina, trazida em desespero do apartamento ao lado, na rua Melo Alves. Lá também falecera Nilo Coelho, referência de afeto. Pois bem, a escrita foi mantida. Tancredo expirou no prédio suspenso da avenida Rebouças. Ainda hoje, viro o rosto quando passo lá. 

Como uma tristeza não vem sozinha, semanas depois eu perdi Dr. Moraes. Médico alagoano, nativo de Penedo, ele e Heloísa formavam um casal solar. Quando chegaram a São Paulo, na década de 40, foram viver na Água Rasa – um bairro operário -, origens de que tinham orgulho. Lá ele clinicou e, pouco a pouco, surgiu a ideia de fabricar panelas. Batizou o empreendimento de Alumínio Penedo, marca presente em milhões de lares do Brasil. A bem da verdade, eu herdara essa amizade da família Coelho. Isso porque, nos idos do passado, D. Josepha perdera um filho para o rio, chamado Caio.

Ora, esse jovem fora colega de Dr. Moraes em Salvador. Ao chegar à escola, ele soube da notícia triste. Ato contínuo, foi até Petrolina e se apresentou à família para dizer o quanto estava sofrendo. Foi o ponto de partida de uma amizade sólida.       

Visionário e próspero, a riqueza do coração ofuscava a do bolso. Quando o conheci – apenas seis anos antes de falecer -, ele só ia à indústria de vez em quando. Geralmente, para levar amigos e almoçar com os operários, em Guarulhos. Outro programa de que gostava muito era de ir ao clube de campo. Vezes sem conta, nos chamou para o almoço do domingo. Depois de um cochilo, ficávamos conversando na sede – não raro na companhia de alguns de seus convidados, como Dr. Fernando e D. Clarinha, que vinham periodicamente de Salvador. Já na casa dos Jardins, reinava um entra-e-sai divertido.

Eu chegava como alguém da família; ia à cozinha cumprimentar Bina – doce relíquia do século XIX. À mesa, sempre cabia mais um; os netos brincavam em uniforme escolar; a cidade trepidava; ali se sorria e se fazia uma pausa festiva.      

Ontem como hoje, a cultura política abrigava nas famílias facções talibãs. Mas na casa de Dr. Moraes, a regra era outra. Pois se as duas filhas se assemelhavam por natureza, os seis rapazes compunham um mosaico do Brasil. Divergiam na política, mas o respeito era de regra. Ironia, só com o time adversário. Assim, quem chegasse à Fazenda São Domingos, em Itu, os veria em renhida partida de futebol – nem sempre amistosa. Fato é que nos domínios do patriarca benevolente, diferenças não degeneravam, só somavam. Ao acordar cedinho – feito raro porque eu curtia a caninha de alambique -, via o casal na capela.

Na paz do interior, íamos então ao terraço. Então ele perguntava da vida. Eu destrinchava os anseios de meus 25 anos. Ele assentia. No final, me tocava o braço e se saía com um surpreendente “Fernando, amigo velho, você ainda vai longe, o caminho é esse mesmo”. Ora, eu não podia ser mais banal. Mas não na régua generosa dele. Na volta, pela Bandeirantes, eu acelerava revigorado.

Dr. Moraes, e o presidente eleito se foram num espaço de seis semanas e as dores se confundiram aqui dentro. Eu e o Brasil tínhamos ficado meio órfãos. A entronização de Sarney provava que a vida era irônica e, às vezes, nos cabia pegar cartas ruins. Quando o corpo de Tancredo viajou para Brasília, o avião sobrevoou São Paulo em despedida. Dr. Moraes me acompanhou até a calçada e, olhando para o céu, deixou escapar uma lágrima, uma mão na bengala, a outra no lenço. Chorou menos por ele e mais por nós – os filhos e amigos que ficariam. E que, trinta anos depois, se sentem privilegiados por lhe ter frequentado a casa.

Quem quer tenha transposto a soleira do portão de madeira por um só dia, foi tratado como rei. Lá não havia os rapapés da frivolidade. Havia o abraço largo de D. Heloísa e a exortação do capitão: “Chegou o homem do mundo. Vamos entrando que Bina vai passar um cafezinho”. 

Fernando Dourado Filho/Consultor em Internacionalização de Empresas

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Últimos Comentários

  1. Deu lugar ao mercado turístico? Por que deram esse nome? Bom, acho que já mudou, mas era melhor ser chamado…